quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sonhos


   

       Enquanto David Lynch (O Veludo Azul, O Homem Elefante) nos revela seus mais perturbadores pesadelos no filme “Eraserhead”, Akira Kurosawa nos presenteia com seus mais belos sonhos no filme denominado simplesmente de “Sonhos”. O filme de 1990 é composto por oito episódios independentes, mas que de certa forma se relacionam com certa dose de poesia e beleza. Tais episódios têm as seguintes denominações, respectivamente: “Brilho do Sol Través de Chuva”; “O Pomar do Pêssego”; “A Tempestade de Neve”; “O Túnel”; “Corvos”; “Monte Fuji em Vermelho”; “O Demônio Chorão” e “A Aldeia de Água”.
    Sonhos, é um dos últimos filmes dirigidos por Kurosawa em seus 50 anos de carreira, com produção norte-americana, destaque para Steven Spielberg (A Lista de Schindler, E.T – O Extraterrestre). Após ter visto sua obra ser incompreendida pelo público japonês, o diretor tenta o suicídio em 1971, mas o luminoso (Akira = “O Luminoso” em japonês) Kurosawa ainda tinha muito que fazer pelo cinema arte. “Um desses salmões, não vendo outro caminho, empreendeu uma longa jornada para subir um rio soviético e dar à luz algum caviar. Assim surgiu meu filme Dersu Uzala em 1975. Nem eu penso que seja essa uma coisa ruim. Mas o mais natural, para um salmão japonês, é pôr seus ovos em um rio japonês”. Referindo-se ao fato de que sempre se considerou um “Salmão, que jamais esquece o lugar que nasce”. Em 1946 o governo japonês reconhece a contribuição de Kurosawa à cultura.
    Talvez por tudo isso que se passou na vida do mestre, a morte esteja tão presente em todos os oito episódios que compões o filme “Sonhos”. O que se confirma com palavras do próprio diretor: “Não há nada que diga mais respeito de um criador do que sua própria obra”. Nessa obra Kurosawa também homenageia seu grande ídolo, o pintor pós-impressionista Vincent Van Gogh, interpretado no filme pelo também cineasta Martin Scorsese (Táxi Driver, Touro Indomável), dedicando um dos episódios (Corvos) inteiramente a ele, episódio no qual, o personagem, alter ego de Kurosawa, caminha entre os dourados campos de trigo sob a sombra dos negros corvos pintados por Van Gogh. Dando-nos uma pequena amostra de um desejo, manifesto, porém irrealizado, filmar a biografia do pintor holandês.
     Mas o que prende inteiramente nossa atenção durante as quase duas horas de projeção, é a belíssima fotografia dirigida por Kazutami Hara Saitô e Masaharu Ueda. Algumas cenas parecem verdadeiros quadros pintados à mão. Kurosawa explora muito os planos gerais e nos embriaga com tantas cenas belas. Não tem a menor pressa em nos mostrar as intempéries vividas por um grupo de homens exaustos à procura de seu acampamento no episódio “A Tempestade de Neve”. E se todo mundo fala tanto das famosas cores de Almodóvar (Fale com Ela, Tudo Sobre Minha Mãe), nesse filme eu ressalto as cores de Kurosawa, que tem uma linguagem prórpia e falam por si só, aliadas a igualmente bela trilha sonora dirigida por Shinichirô Ikebe, lembrando que o silêncio funciona muito bem como trilha sonora também. Quanta sensibilidade, pura arte em movimento. Kurosawa tentou a carreira de artista plástico, mas foi reprovado na Escola de Belas-Artes.






Salma Nogueira.




terça-feira, 4 de maio de 2010

Gritos e Sussurros



   Ambientação da primeira cena do filme: a neblina, o jardim, a casa, os relógios (vários deles) a irmã que dorme na sala ao lado e a irmã enferma. E assim tem início mais uma obra de arte do genial diretor sueco Ingmar Bergman com a belíssima fotografia de Sven Nykvist. Nessa película de 1972 Bergman abusa da cor vermelha e dos closes para nos mostrar a fria relação entre três irmãs, Karin (Ingrid Thulin), Maria (Liv Ullmann) e Agnes (Harriet Andersson), esta última, sofre, devido ao câncer terminal e tem como criada Anna (Kari Sylwan), a qual cuida da enferma com notável zelo e carinho.
    Os relógios são os carrascos de Agnes, dando a ela cada vez menos tempo de vida e a nós mais tempo de closes torturantes. Não que haja algum problema em encarar as interpretações magistrais que Bergman sempre conseguia extrair de suas atrizes, mas é como se invadíssemos a intimidade das irmãs. As cenas esvaem-se em fade outs de um vermelho vibrante, vermelho esse que inicia a próxima cena, que entra em fade in. O mesmo vermelho que dá vida a casa, predominante em todos os ambientes e contrasta com as vestes em cores claras e por vezes mórbidas, preferidas pelas personagens.
    E como falar de Bergman sem falar nas questões existenciais presentes em todos os seus filmes e sempre muito bem abordadas? Enquanto joga xadrez com a personificação da morte de maneira a prolongar sua própria existência, Antonius Block (Max von Sydow) refletia sobre sua própria vida, em mais um brilhante filme de Bergman (O Sétimo Selo). Ao se deparar com a agonia dos últimos dias de Agnes, Karin e Maria também refletem sobre suas próprias vidas, seus matrimônios, suas inseguranças e infelicidades. E a morte de Agnes acaba aproximando as vidas separadas de suas irmãs.
     É importante ressaltar ainda a bela relação entre Agnes e Anna, a carinhosa e incansável Anna, que por tantas desventuras passou na vida, sempre tão presente, mesmo quando não requisitada, e cheia de zelo por Agnes. Mas quando se trata de Begman é difícil não ser injusta com uma obra tão cheia de aspectos que podem ficar na casa do não dito. Dono de uma mise em scène ímpar, Bergman sabia muito bem como utilizar cada elemento cinematográfico para expressar exatamente o que ele nos queria transmitir em suas obras. O silêncio é tão presente, tão fundamental e tão bem utilizado na obra, que parece até um personagem, sempre entrecortado por gritos de dor e sussurros renitentes.

Salma Nogueira.