quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Sonho de Cassandra

   Em seu terceiro filme produzido em Londres, Woody Allen reafirma e ao mesmo tempo inova, seu peculiar estilo cinematográfico, aprimorado a cada novo filme de seus mais de quarenta anos de carreira. Reafirma quando nos apresenta a personagens extremamente bem desenvolvidos e que no caso desse filme, apresentam total entrosamento ao desenvolver personagens complexos. Reafirma ainda, ao colocar como plano de fundo a bela cidade de Londres, o filme é basicamente feito em locações externas, acompanhado de uma trilha sonora que não deixa a desejar, bem ao estilo Woody Allen. Mas desde “Scoop – O Grande Furo” (2006), primeiro filme rodado em Londres e último filme no qual Woody Allen atuou, mesmo com o ar cômico de seu personagem habitual, já podemos sentir um ar sombrio que tem rondado seus filmes desde então.
    Com uma filmografia tão extensa, Woody Allen se reinventa a cada novo filme e tem a total liberdade de experimentar e ousar o quanto quiser, poucos tem essa vantagem, e ele sabe utilizá-la muito bem, isso é inegável. A seqüência “Match Point” (2005), “O Sonho de Cassandra” (2007) e “Vicky Cristina Barcelona” (2008), são filmes com extrema carga emocional, e no que diz respeito a construção de personagens, Woody Allen é mestre. Já em seus dois últimos filmes, “Tudo Pode Dar Certo” (2009) e “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos” (2010), o ar sombrio que rondava seus filmes desde seu primeiro longa rodado em Londres, dá lugar a um humor leve e delicado, presente no cotidiano de personagens, que de uma maneira ou de outra, buscam a felicidade, querem acertar, aprender com os erros, são como nós, espectadores.
   A obra em questão nos coloca diante dos irmãos Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell), os quais unindo suas economias e a longas prestações, logram adquirir um barco de segunda mão, o qual denominam aleatoriamente de “O Sonho de Cassandra”, que simbolicamente nos remete ao mito grego de Cassandra, a mulher que recebeu o dom de prever o futuro ao mesmo tempo em que é castigada com infelicidade de que ninguém jamais acreditaria em seus presságios. Os irmãos tem objetivos e estilos de vida distintos, sendo que Ian ajuda o pai (John Benfield) a administrar o restaurante da família, mas sonha alto, sempre almejando carros de luxo, viagens e ambiciosos investimentos, tudo ganha uma  dimensão ainda maior quando Ian conhece a bela atriz iniciante Angela Stark (Hayley Atwell). Já Terry, trabalha em uma oficina mecânica e cultiva modestos sonhos ao lado da namorada Kate (Sally Wawkins), mas paralelo a isso, Terry é viciado em jogos de azar, sendo sua sorte, visivelmente instável. 
    Mesmo com todas as diferenças e a seu modo, os irmãos padecem do mesmo mal, querem mais do que podem ter. E isso se agrava à medida que Terry perde o controle sobre o vício do jogo e Ian deixa-se envolver cada vez mais por Angela. Como única saída os irmão buscam a ajuda do bem sucedido tio Howard (Tom Wilkinson), que de tão mencionado até nos remete ao filme "Meu Tio da América" (Alain Resnais, 1980), parecendo esse mais um ideal, uma utopia do que um ser real de fato. Tão real que dá rumos significativos e perturbadores a vida dos irmãos Ian e Terry.
    Obtendo sucesso de maneira ilegal, Howard teme ser desmascarado e sentindo-se ameaçado, em troca da ajuda financeira proposta pelos sobrinhos, Howard pede que esses eliminem Martin Burns (Philip Davis), o sócio que ameaça sua credibilidade, frente aos negócios. É então que Woody Allen começa a questionar os conceitos de moral das personagens e os nossos próprios, aliando isso à aceleração rítmica do filme. E como Terry diz ao irmão:  "Isso é um caminho sem volta". Os caminhos são distintos e irreversíveis de fato, o que nos leva a um desfecho de certa forma, sombrio e pessimista, mas também único e inesperado. É cinema, é Woody Allen e só isso já são pré-requisitos para não esperar nada menos que um ótimo filme.

Salma Nogueira.
    

 *Texto dedicado a Samy Twist.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Volver


   A morte sempre é um assunto largamente abordado na obra do cineasta espanhol  Pedro Almodóvar, mas ele nunca a tratou de maneira tão sensível e delicada como em “Volver” um filme de 2006. A morte sempre dá diferentes resoluções e tem diferentes propósitos na obra de Almodóvar, comparando um de seus primeiros longa metragens “Matador” de 1986, que nos conta a história de um toureiro precocemente aposentado, Diego Montes (Nacho Martínez) e uma advogada, María Cardenal (Assumpta Serna), na qual ambos sentem um estranho prazer sexual na morte. E seu último filme produzido até então, “Abraços Partidos” de 2009, que conta a história de Mateo Blanco (Lluís Homar) que perdeu simultaneamente a visão e sua grande paixão  em um acidente de carro. Passando ainda por obras maravilhosas como “Tudo Sobre Minha Mãe”(1999), “Fale Com Ela”(2002) e “Má Educação”(2004) que utilizam a morte de maneira significativa, dando novos destinos a vida dos personagens.
   Profundo admirador do universo feminino, Almodóvar sempre nos coloca diante de mulheres extremamente fortes e independentes. Sempre buscando meios de homenagear as mulheres em seus filmes, afirmando que sem elas, suas obras não existiriam, admitindo ainda que sua vocação é ser o primeiro espectador delas. Em “Má Educação” ele faz isso, por meio das personagens homossexuais, que travestidos de mulher, expressão seu eu feminino reprimido. Isso, sem falar das famosas cores de Almodóvar presentes desde a cenografia, às vestes e maquiagens das personagens, definindo personalidades distintas e individualmente fortes.
      Em “Volver” não é diferente, e o elenco é inteiramente feminino, sendo que um dos poucos homens que aparecem na história, morre logo no início do filme, mostrando-se totalmente descartável para o desenvolvimento da obra em questão. É o marido de Raimunda (Penélope Cruz), uma jovem mãe que exerce vários trabalhos para sustentar a casa, o marido bêbado e desempregado e a filha adolescente. Raimundo é a irmã mais nova de Sole (Lola Dueñas), uma mulher que vive sozinha desde que o marido a abandonou para fugir com uma das clientes do salão de beleza ilegal que Sole mantém em casa. Ambas são filhas de Irene (Carmen Maura), a qual acreditam estar morta. Há ainda, Agustina (Blanca Portillo) prima de Raimunda e Sole, que busca notícias do paradeiro da mãe desaparecida.
   Com um roteiro brilhante do próprio Almodóvar, ele nos mostra que a morte pode sim dar caminhos inesperados a vidas talvez desinteressantes. “Volver” desenvolve o que Almodóvar faz de melhor, nos mostrar dias extraordinários, no cotidiano de mulheres totalmente possíveis. Abusando da sensualidade e do poder que suas atrizes têm de conquistar o público, Almodóvar nos emociona mais uma vez, com uma história cruel, como várias que ele imortalizou, mas que certamente poderiam ser reais.
    

Salma Nogueira.

Desconstruindo Harry


    
  

   Com forte teor surrealista “Desconstruindo Harry” (Desconstructing Harry) de 1997 é mais uma obra memorável na brilhante carreira de Woody Allen. Filme que deu ao cineasta sua décima terceira indicação ao Oscar de melhor roteiro original, mas que naquele ano acabou perdendo o título para o filme “Gênio Indomável”. Woody Allen mais uma vez dá um show de direção e interpretação - isso, claro, para os fãs do judeu tagarela, hipocondríaco, intelectual inseguro, que marca sua carreira como ator em seus filmes - mas o que dá o ar de genialidade a obra, é mesmo o roteiro, o que justifica a indicação.
   Harry, interpretado pelo próprio Woody Allen, é um escritor bem sucedido, que utiliza os acontecimentos de sua própria vida e conseqüentemente das pessoas que vivenciaram tais acontecimentos com ele, como “inspiração” para a construção das histórias de seus livros. Porém, além do exagero empregado em algumas passagens das histórias desenvolvidas por ele, em comparação ao episódio de sua vida que a inspirou, a diferença entre a ficção e realidade dos fatos, se dá pela simples troca do nome das personagens, o que é facilmente detectado pelas pessoas que tem algum conhecimento dos fatos reais.
    Com um elenco crescente de celebridades que nos surpreendem a todo o momento, como Elizabeth Shue, Billy Cristal, Tobey Maguire, Demi Moore, Stanley Tucci, entre outros, Woody Allen cria uma história fantástica, misturando realidade e ficção, colocando os personagens reais que inspiraram as passagens de seus livros de frente com as personagens fictícias, ao relembrar o que aconteceu de fato em sua vida e por vezes deixa-se envolver por acontecimentos surreais que acometem seus personagens, como o caso o homem que fica embaçado, interpretado por Robin Williams. Harry em meio a um bloqueio criativo, ainda busca uma companhia para uma homenagem que ele deveria receber no colégio do qual já fora expulso.
    Woody Allen visivelmente consciente e à vontade, brinca com um roteiro encantador que nos permite visualizar o improvável, o encontro entre o criador e a criatura. Harry, o criador, um ser extremamente inseguro e perturbado ao se deparando com todo o mal que pode de fato ter causado as pessoas que inspiraram suas obras, as quais o colocam de frente a personagens extremamente conscientes e maduros, que na verdade, são o próprio Harry. Um Harry talvez, perdido em seu inconsciente. “Desconstruindo Harry”, que na época de seu lançamento, não foi bem visto pela crítica, é uma obra para ser admirada e revista sempre, de um humor ácido e de constantes reflexões sobre morte, sexo, religião... Temas recorrentes na admirável e diversificada carreira de Woody Allen.
      


 Salma Nogueira.